A poesia ortônima é aquela que, quando comparada com a heteronímia ou a pseudonímia, corresponde à outra escrita pelo próprio autor. Nesta matéria, entenda melhor o conceito e como ele é aplicado ao grande poeta português Fernando Pessoa.
O que é poesia ortônima?
Diz-se poesia ortônima para aquela cuja autoria corresponde ao autor real. A terminologia é utilizada quando o(a) autor(a) também publica com um pseudônimo ou um heterônimo. Desse modo, para se referir à obra do autor (publicada com seu verdadeiro nome), usa-se o termo ortônimo.
Além de Fernando Pessoa e seus heterônimos mundialmente conhecidos, diversos escritores criaram pseudônimos para comporem suas obras, os casos mais conhecidos são: as irmãs Brontë, Daniel Handler, Agatha Christie e Stephen King.
Poesia ortônima e poesia heterônima
Primeiramente, é preciso entender o que é ortonímia, heteronímia e pseudonímia. Ortonímia vem da junção de duas palavras gregas: orthos (reto, verdadeiro) e ónoma (nome), portanto é o nome verdadeiro. Já heteronímia é a junção de héteros (diferente) e ónoma (nome), ou seja, nome diferente. Por fim, pseudonímia vem também do grego: pseudo (falso) e e ónoma (nome).
Assim, um pseudônimo significa que o escritor está publicando com um nome falso, já um heterônimo significa outro nome, que carrega uma personalidade diferente do ortônimo – nome real do escritor.
Quando colocadas em uma relação de coexistência, ou seja, quando se deseja referir a esses dois tipos de poesia, a relação é daquele que cria e daquele que é criado. A poesia ortônima é quem cria (o autor ele-mesmo), ao passo que a heterônima é criada (uma personalidade inventada).
Fernando Pessoa e a poesia ortônima
Ao se falar em poesia ortônima e heterônima, o nome de Fernando Pessoa salta à memória, isso porque ele foi um dos grandes poetas a explorar essas formas poéticas. Sua poesia ortônima, isto é, aquela atribuída a pessoa empírica e real, é marcada por diversas fases e temas. Um ponto que sempre estará presente, no entanto, é o caráter moderno, haja vista que o poeta é um dos pioneiros do Modernismo em Portugal junto a demais autores, como Mário de Sá-Carneiro, com a publicação da revista Orpheu.
Características
Pessoa foi influenciado por diversos discursos que resvalaram na sua obra, como a religião, o misticismo e até certo patriotismo. Abaixo, confira as principais características de sua poesia ortônima:
- Sebastianismo: pode-se dizer em um sebastianismo reinventado, isso porque a crença na volta de Dom Sebastião já ocorria na produção de outros autores, como João de Castro ou até mesmo Padre Antônio Vieira. Também conhecida como Movimento Órfico, essa crença profética acreditava que o passado heroico de Portugal deveria retornar.
- Influência da teosofia: isso resultou em uma poesia com conteúdos míticos em tons heroicos.
- Dramaticidade: muitos críticos literários, como Massaud Moisés e Roman Jakobson defendem que existe, na obra de Pessoa, um forte teor dramático (no sentido do gênero literário drama). Isso confere à poesia uma escrita dialética, pois o drama (como nas tragédias) coloca em exercício a contradição entre suas personagens. Pessoa consegue trabalhar com essas contradições nas idas e vindas entre seu ortônimo e seus heterônimos.
- Metalinguagem: sua poesia ortônima também tinha um caráter reflexivo e subjetivo, o que se traduzia em poemas metalinguísticos ou até mesmo metapoéticos, no sentido em que refletiam sobre o fazer poético.
Embora tenha várias obras, Fernando Pessoa publicou apenas um livro em vida, Mensagem, de 1934, que conta com sua poesia ortônima. O livro é uma coletânea que explora as grandes personalidades históricas portuguesas, influenciado pela teosofia e de caráter subjetivista.
Heterônimos de Fernando Pessoa
Como já mencionado, Fernando Pessoa, além de sua poesia ortônima, criou diversos heterônimos. Três plenamente desenvolvidos e um semi-heterônimo. Lembrando que, diferentemente de um pseudônimo, um heterônimo é uma personalidade completamente distinta da do criador, com seu próprio nome, pensamentos, sentimentos, medos, desejos etc.
Em uma de suas cartas, Pessoa diz sobre seus heterônimos: “criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi dentro de mim as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim” (PESSOA, 1986, p. 228).
- Alberto Caeiro: mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, Alberto Caeiro é o poeta pastor, contemplativo da natureza, tido pelos discípulos quase como uma figura mística. Caeiro não gostava do epíteto poeta-filósofo, pois acreditava que pensar e refletir obscurecia a realidade, que era fácil de reconhecer ao ser vista. É dele o conhecido verso “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.
- Ricardo Reis: médico, adepto à monarquia, estudioso dos grandes clássicos, Ricardo Reis é um poeta mais erudito. Ele é influenciado por pensamentos da Antiguidade Clássica, como o epicurismo e o estoicismo. Visava sempre o equilíbrio e a harmonia. Um de seus poemas conhecidos é “Tenho Mais Almas que Uma”.
- Álvaro de Campos: talvez um dos heterônimos mais desenvolvidos em termos de fases e modificações de pensamento, Álvaro de Campos era um engenheiro e foi decadentista, futurista, até, enfim, aderir às visões mais niilistas. Dos três heterônimos, é o mais moderno, que mais tende às visões da modernidade e da cidade. Seu poema mais famoso é Tabacaria.
- Bernardo Soares: é um semi-heterônimo, que publicou “O Livro do Desassossego”. Sua personalidade não é distinta nem a mesma da de Fernando Pessoa. Como o próprio ortônimo diz, é uma versão com menos reflexão e afetividade.
Existem muitos outros heterônimos e semi-heterônimos criados por Fernando Pessoa, como: Antonio Mora, Alexander Search, Charles James Search, Jean Seul de Méluret, Adolph Moscow, Gaudêncio Nabos. Também há outros, que você pode conferir no acervo oficial do poeta.
Poemas ortônimos de Fernando Pessoa
Veja, a seguir, dois poemas muito conhecidos da poesia ortônima de Fernando Pessoa. O primeiro traz os versos icônicos do poeta fingidor, o que também serve de chave interpretativa para a análise de sua obra, com a ideia de que o poema é uma representação. O segundo é o décimo poema da segunda parte de “Mensagem”.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
O último poema denota bem o tom dos poemas de “Mensagem”, livro em que Pessoa tenta recuperar as glórias de Portugal. Gostou da matéria? Conheça outro grande poeta português: Luís de Camões.
Referências
Os oxímoros dialéticos de Fernando Pessoa (2007) – Roman Jakobson
Fernando Pessoa: O espelho e a esfinge (2008) – Massaud Moisés
O heterônimo ortônimo e o Álvaro de Campos: do tempo mítico ao tempo das efêmeras sensações (2019)- André Boniatti e Ana Maria Martins Alves Vasconcelos
Pessoa ortônimo e Ricardo Reis: Tanto lá quanto cá, ainda assim, nem cá nem lá… (2006) – Marcelo Antônio Ribas Hauck e Mireile Pacheco França Costa
Carta a Adolfo Casais Monteiro de 13.01.1935 (1986) – Fernando Pessoa
Exercícios resolvidos
1. [URCA 2015]
A respeito de Fernando Pessoa, é INCORRETO afirmar que:
a) Não só assimilou o passado lírico de seu povo, como refletiu em si as grandes inquietações humanas do começo do século.
b) Os heterônimos são meios de conhecer a complexidade cósmica impossível para uma só pessoa.
c) Ricardo Reis simboliza uma forma humanística de ver o mundo do espírito da Antigüidade Clássica.
d) Junto com Mário de Sá-Carneiro, dirige a publicação do segundo número de Orpheu.
e) A Tabacaria, de Alberto Caeiro, mostra seu desejo de deixar o grande centro em busca da simplicidade do campo.
Alternativa E está correta.
Justificativa: o poema “Tabacaria” é de Álvaro de Campos, que abordava as questões relativas à modernidade.
2. [UNICAMP 2016]
Leia o poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa.
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
No poema, a apóstrofe, uma figura de linguagem, indica que o enunciador:
a) convoca o mar a refletir sobre a história das navegações portuguesas.
b) apresenta o mar como responsável pelo sofrimento do povo português.
c) revela ao mar sua crítica às ações portuguesas no período das navegações.
d) projeta no mar sua tristeza com as consequências das conquistas de Portugal.
Alternativa A está correta.
Justificativa: Pessoa não via o passado de Portugal como um olhar eminentemente derrotista, ao contrário, desejava a volta dos tempos gloriosos. Por isso, o poema tem um sentido de convocar à reflexão sobre a história, a fim de recuperar o tempo das navegações.